12/04/2016

A minha identificação? Sou uma mulher síria (um depoimento incrível)

Hanady Alkhatib, jornalista síria que foi obrigada a abandonar a Síria por temer represálias do regime de Assad, vivendo atualmente no Dubai, escreveu um texto em abril do ano passado em que fala sobre a dor de perder tudo - de perder o filho, o marido, o pai, a mãe. 

Sobre a dor de ter de identificar os restos mortais dos homens da sua família, assassinados por terroristas ou pelo regime, não menos terrorista do que os terroristas. 

Sobre a dor de viver em permanente estado de culpa, sentindo-se permanentemente culpada por estar viva. Sobre a dor de viver enquanto muitos estão a morrer. Sobre a dor, crónica, de ser síria nos dias que correm. 

A minha identificação? Sou uma mulher síria
 
O mundo vira-me as costas pela enésima vez. Sou a mulher síria que teve de identificar o seu irmão através de uma série de fotografias tiradas à socapa do matadouro de Assad. Entrei em contacto muitas vezes com a Rede Síria para os Direitos Humanos [SNHR na sigla em inglês] para saber se tinham informações sobre o meu irmão, mas a resposta que me davam era sempre a mesma. “Não temos novidades”. O meu coração parecia sufocar de cada vez que ligava para lá. Ontem, enviei-lhes uma fotografia pelo telemóvel daquilo que em tempos fora um ser humano. “Este é o meu irmão”, escrevi.


Vem-me novamente à cabeça o relatório Caesar [nome por que também é conhecido o documento divulgado em 2014 pelo “Guardian” sobre o assassínio de mais de 11 mil prisioneiros sírios pelo regime entre março de 2011 e agosto de 2013] e as 55 mil imagens de pessoas mortas e torturadas nos calabouços de Assad. Este relatório veio denunciar aquele que é o maior escândalo da Síria do séc. XXI, e estilhaçar os corações de mais de 11 mil mães que ainda esperavam vislumbrar uma réstia de luz ao fundo de um interminável túnel. Aquelas fotografias não são para nós apenas uma manchete nos jornais. Aqueles rostos são-nos familiares. São os rostos de 11 mil homens, 11 mil seres humanos. Ou melhor, são os restos de pessoas que nós conhecíamos, que viveram entre nós. Mas, cuidado. É preciso suster a respiração antes de ver as imagens. É preciso estar preparado para a viagem de horror e sofrimento que aí vem. Uma viagem em que lamentar não chega. Uma viagem em que a raiva e a revolta são tão ensurdecedoras que não se consegue ouvir nada a não ser os gritos desses restos humanos.

Sou uma mulher síria. O meu irmão, que eu não via há três anos a não ser através do ecrã do computador, enviou-me um email com duas fotografias e perguntou-me - “Por favor, diz-me… Reconhece-lo? É ele na fotografia? Não consigo acreditar que seja ele!” Os meus olhos encheram-se de lágrimas e o meu coração morreu por dentro. Quando recebi o email dele apeteceu-me gritar - “Porque é que me pediste para te ajudar?”. “Meu querido irmão, lamento, mas é de facto ele”, disse-lhe. A mãe desse amigo morreu quando viu as fotografias do filho. Deus escolheu-a. Deus quis libertá-la do sofrimento e da dor. Libertá-la de uma longa espera.

Sou uma mulher síria. No dia em que a minha tia morreu, virei-me para a minha mãe e disse: “Pelo menos morreu deitada na sua cama. Temos de a enterrar rapidamente”. Não queria ter de enfrentar o seu olhar de espanto e inquietação. O que era suposto eu dizer-lhe? Apresentar-lhe as minhas mais profundas condolências? Deixei cair a cabeça no seu colo e chorei. “Mãe, houve muitas pessoas que tiveram de identificar as suas crianças no meio de muitas outras. A tia morreu enquanto estava connosco, ao menos sabemos como e onde. Por favor, podes ao menos chorar por todos os jovens sírios que também morreram?”, gritei-lhe.

Sou uma mulher síria. “Acusam-me de estar do lado do Estado Islâmico só porque tenho um passaporte azul. Eles parecem esquecer-se que fui obrigada a identificar os restos mortais do meu irmão através de uma série de fotografias numeradas online. Eles parecem esquecer-se que tenho a visão turva de tanto chorar pela minha mãe”. Nos aeroportos, as pessoas dirigem-me olhares desconfortáveis, cheios de dúvidas. O mais provável é que me digam para me afastar um pouco e deixar que todos os outros passageiros passem primeiro. Esses passageiros que não sabem o que é chorar pelos seus entes queridos e ser acusado de estar do lado do Estado Islâmico - esses passageiros que não têm familiares que desapareceram nessa casa de horror do Presidente Assad a que nós chamamos Síria.

Sou uma mulher síria, forçada a sorrir. Espero em longas, longas filas, por um pedaço de pão, e desejo que a minha mãe parta antes de ver o que eu tenho visto. Não vale a pena repetir - “Não é o teu filho. Não é o teu filho”. As mães percebem logo se é ou não. As mães sabem quem trouxeram ao mundo. Elas sabem, simplesmente.

Sou uma mulher síria que se sente estranha quando um colega simpático a cumprimenta no trabalho, surpreendida com um gesto tão amigável no meio de tanta dor. Uma amiga minha libanesa diz-me uma piada, tentando desesperadamente arrancar-me um sorriso, mas eu fujo dela, fujo do mundo. Não consigo deixar de pensar naquelas fotografias - elas são o tesmunho de que está em curso um novo Holocausto. Não consigo escapar à revolta e à tristeza.

Sou uma mulher síria que vive em permanente estado de culpa, sentindo-se permanentemente culpada por estar viva. Sou uma mulher síria que acorda com o bater do coração, que treme ao ver as notícias, que espera ansiosamente que a irmã, a viver em Damasco, atenda o telefone, e que fica aliviada por saber que ela ainda está viva, embora odeie esse sentimento, porque no mesmo dia outra irmã de outro sírio morreu, vítima de Assad.

Sou uma mulher síria, do país que os líderes mundiais escolheram para seu campo de batalha contra o Estado Islâmico, permitindo que Assad continuasse no seu trono. Ouço o que dizem os Estados Unidos e a Europa, o que diz o mundo inteiro, e enfurece-me tamanha hipocrisia. “Nós não reconhecemos a legitimidade do regime sírio”, dizem, mas não fazem nada em relação a isso. Pelo contrário, enchem os terroristas de armas e dinheiro e depois lutam contra eles por cima de mim, lá do céu. É claro que os media ocidentais simpatizam comigo. Mas eu acabo por ficar sempre sozinha, a sofrer ainda mais e a morrer ainda mais às mãos do Estado Islâmico e do regime de Assad. Esquecem-se de mim outra vez, e outra vez, como se tivessem decidido punir-me por eu querer respirar e viver.

Sou uma mulher síria. Não sou o Estado Islâmico ou Assad. O regime tirou-me o meu país e matou-me. O Estado Islâmico fez de mim sua escrava e fez de mim orfã. Eu fugi aos dois, mas afoguei-me no mar. Eu fugi aos dois, mas morri de calor, morri de frio, morri de doença e morri de fome, numa tenda de refugiados. Sou uma mulher síria. Tive de identificar os restos do meu filho, do meu irmão, do meu pai e do meu marido entre uma pilha de fotografias. Sou a mulher que continua a ser rejeitada pelo mundo inteiro, outra vez, e outra vez.

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Hanady Alkhatib, 40 anos, nasceu em Damasco, na Síria, onde viveu até 2012. Jornalista na estação televisiva Al-Arabiya, acompanhou a revolução síria desde que se fizeram ouvir os primeiros protestos contra o regime do Presidente sírio Bashar Al-Assad, em Dara, no sudoeste do país, estendendo-se depois a outras cidades. Hanady Alkhatib terá sido, aliás, uma das primeiras pessoas a escrever sobre o conflito.

Embora assinasse os artigos com um nome falso (Jafra Bahaa), mais para proteger a família do que a si mesma, a jornalista síria nunca escondeu a sua opinião em relação ao regime de Assad. No trabalho, todos sabiam o que ela pensava sobre o assunto. Por isso, não tardou muito a perceber que estava a ser investigada pelos serviços secretos sírios. Naquele primeiro ano de revolução, em que a repressão e brutalidade da polícia tiveram o efeito contrário ao pretendido, intensificando a contestação e a violências nas ruas, quem falasse contra o regime era detido. Hanady Alkhatib vivia com a filha e começou a recear que acontecesse alguma coisa às duas. De todos os cenários possíveis, o que mais temia era ser presa. “Para uma mulher síria, a prisão é bem pior do que a morte, por causa da tortura e das violações”. Decidiu, portanto, que o melhor seria deixar o país. Partiu em 2012 para o Dubai, onde está sediada a Al-Arabiya (é lá que vive atualmente).

Dois anos depois, em 2014, foi ameaçada mais do que uma vez por combatentes do autoproclamado Estado Islâmico (Daesh), que entretanto já dominava uma vasta faixa territorial entre a Síria e o Iraque. Isso não a impediu, contudo, de continuar a fazer o seu trabalho, ou “dever”, como lhe chama. “Continuo a fazer o meu dever, que é o de contar a verdadeira história do meu povo”, diz Hanady Alkhatib, em conversa com o Expresso. Perguntamos-lhe qual é a “verdadeira história” e ela diz-nos que, na sua opinião, os media ocidentais têm estado mais interessados no Daesh do que no regime de Assad e nos crimes cometido por ele. “Não está a ser contada a história toda às pessoas”.

Em abril do ano passado, Hanady Alkhatib escreveu um texto, intitulado “A minha identificação? Sou uma mulher síria”, em que fala sobre a dor de perder tudo - de perder o filho, o marido, o pai, a mãe. Sobre a dor de ter de identificar os restos mortais dos homens da sua família, assassinados por terroristas ou pelo regime, não menos terrorista do que os terroristas. Sobre a dor de viver em permanente estado de culpa, sentindo-se permanentemente culpada por estar viva. Sobre a dor de viver enquanto muitos estão a morrer. Sobre a dor, crónica, de ser síria, tendo em conta o tempo em que vivemos nos dias que correm. 

Retirado do Jornal Expresso, com anotações de Helena Bento