04/09/2017

Tudo para perceber como foi escolhido o SIRESP mais caro

A EADS, hoje grupo Airbus, prometera um SIRESP seis vezes mais barato (€90 milhões em vez de €533 milhões), mas a proposta foi travada. Para a PJ, o então ministro Daniel Sanches tornou-se o principal suspeito de interferência no negócio, que envolvia a SLN.
 
No final de maio de 2001, Almiro de Oliveira – presidente do grupo de trabalho criado pelo governo de Guterres para estudar um sistema de telecomunicações e emergência – recebeu na sua secretária uma carta da EADS Defence & Security Networks, hoje Grupo Airbus e uma das principais especialistas em radiocomunicações digitais para a segurança pública. 

Nessa carta, a EADS oferecia uma tecnologia digital (a TETRAPOL) reconhecida pelo espaço Schengen, já operacional em 27 países, entre eles França e Espanha, e com capacidade para ser “uma infraestrutura compartida” entre todas as forças de segurança e de emergência portuguesas. Prometia cobertura do território nacional em 95% do tempo e 90% do espaço, oferecia um sistema que permitiria aos bombeiros nunca deixarem de comunicar entre si quando estão fora da zona de cobertura. 

E o bónus para o Estado português é que a empresa estimava o custo para fornecimento destes “equipamentos e prestação de serviços associados” em apenas €90 milhões, cerca de seis vezes menos do que viria a custar o Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança (SIRESP) adjudicado ao consórcio SLN/Motorola (€532,8 milhões na proposta inicial).

A EADS manteve os contactos com o grupo de trabalho liderado por Almiro de Oliveira e chegou a convidá-lo a conhecer as redes de emergência e comunicações que desenvolvera em Espanha e em França. Em maio de 2003, a empresa foi uma das cinco contactadas oficialmente para apresentar uma proposta para um SIRESP – a par da Siemens, da Motorola, da Nokia e da OTE. A 11 de julho desse ano, teve acesso ao caderno de encargos em que se definiam todas as condições do projeto.

No fim do prazo estipulado para apresentação de propostas, em setembro de 2003, só o consórcio que integrava a Motorola, a SLN, a Esegur, a Datacomp e a PT Ventures tinha apresentado uma candidatura. Não que outros concorrentes não tivessem mostrado interesse. A meio do verão, os representantes da EADS pediram o alargamento do prazo, argumentando que, devido aos incêndios que lavraram em Portugal nesse período, não tinham conseguido visitar os locais onde deveriam ser instaladas as estações-base nas datas agendadas no programa de visitas, organizado pelo Gabinete de Estudos e de Planeamento de Instalações (GEPI). A 29 de agosto, a Comissão de Avaliação negou o pedido da EADS, considerando-o “extemporâneo”, e alegando que o argumento dos incêndios florestais “carecia de fundamento” e de “razoabilidade”, pois todas as empresas convidadas tinham tido as mesmas oportunidades e imprevistos e mais nenhuma se tinha queixado ou pedido o adiamento. 

 



Era para o Euro, mas afinal...

 

Não conformada, a EADS interpôs um recurso hierárquico para o então ministro da Administração Interna, alegando estar em causa o princípio da concorrência. 
A 8 de setembro de 2003, Figueiredo Lopes indeferiu o pedido, esclarecendo que o mesmo era “extemporâneo” porque “inoportuno” e “sem fundamento”.

A empresa, ainda assim, não se conformou, e a 15 de setembro, data limite para apresentação de propostas (esse prazo tinha sido entretanto adiado de dia 1 para 15), voltou a protestar junto da Comissão de Avaliação do Ministério da Administração Interna (MAI), levantando pela primeira vez as suspeitas de que empresas concorrentes teriam tido acesso a informações privilegiadas sobre o concurso antes de receberem o caderno de encargos: “Face às atuais condições e com as informações que foi possível obter nas mencionadas circunstâncias, a EADS Telecom considera que não estão reunidas as condições necessárias para que nenhuma empresa, sem informação previamente adquirida, possa elaborar um estudo técnico-económico (…) e consequentemente proposta que venha a adequar-se aos interesses e objetivos estabelecidos pelo Estado português”.

A empresa reiterava que a sua tecnologia serviu eventos como o Mundial de Futebol de Paris, em 1998, e que todos os seus projetos tinham sido entregues dentro dos prazos. Porém, o prazo para o concurso português (cerca de um mês e meio, alargado depois para dois meses), alegava a EADS, não era suficiente para apresentação de uma proposta “adequada e fiável”.

Apesar de só ter sido apresentada uma proposta a tempo e horas, e de esta ter sido avaliada entre o “medíocre e o suficiente” pela Comissão de Avaliação – que pediu a sua reformulação –, 
o MAI não viu razões para alargar o prazo, permitindo que outros interessados apresentassem outros sistemas e preços mais competitivos.

A revolta da EADS por não ter conseguido apresentar um projeto não acabou ali. A 7 de abril de 2004, a empresa voltou a contestar, escrevendo desta vez uma carta ao então primeiro-ministro, Durão Barroso. Onde estava afinal o sistema SIRESP – que, de acordo com o contrato, já devia estar prestes a entrar em funcionamento –, perguntavam os responsáveis da EADS. A questão era da maior importância porque um dos motivos para as empresas convidadas não terem participado foi precisamente a urgência: o Estado queria um sistema pronto a funcionar no Euro 2004. Mas o Europeu de Futebol estava à porta e não havia SIRESP. E isso, por si só, argumentava a EADS, era motivo suficiente para anular o contrato feito com a SLN/Motorola, para abrir um novo concurso e permitir que o Estado recebesse propostas mais “competitivas”.

“Deste modo”, alegou a EADS, “ficou Portugal privado da possibilidade de avaliação de propostas alternativas assentes em tecnologias experimentadas, com particular sucesso nos sistemas de comunicações de emergência e segurança de diversos países (…) e quiçá financeiramente mais vantajosas.”

Mais uma vez, nada aconteceu. O MAI argumentou até, em resposta ao gabinete do primeiro-ministro, que a urgência do SIRESP nada tinha a ver com o Euro 2004. Não era verdade. No despacho do próprio ministério, de setembro de 2003, que indefere o recurso hierárquico interposto pela EADS, Figueiredo Lopes dera como exemplo da urgência da entrada em funcionamento do SIRESP a necessidade de segurança acrescida no campeonato de futebol organizado por Portugal. Os prazos para entrega das propostas não podiam ser dilatados porque a primeira fase de implementação do sistema teria de estar pronta “impreterivelmente” até ao final de abril de 2004, conforme constava do caderno de encargos.

O arguido que nunca o foi

 

Todas estas reclamações e consequentes respostas constam do processo judicial que investigou a adjudicação do SIRESP, entretanto arquivado e que a VISÃO consultou. Os inspetores da Polícia Judiciária (PJ), que tomaram conta do caso quando ainda era apenas uma investigação preventiva, estranharam as respostas aos protestos da EADS e quiseram ouvir a empresa. Um vice-presidente e outro alto responsável da EADS deslocaram-se a Lisboa em maio de 2005 para serem ouvidos: confirmaram que os prazos obrigatórios para apresentação das propostas, mesmo para uma empresa com aquela experiência, eram impossíveis de cumprir; defenderam que o lançamento de um novo concurso público teria deixado todos os concorrentes em posição de igualdade e ainda acrescentaram que, se o Estado português quisesse anular a adjudicação do SIRESP, continuavam disponíveis para apresentar uma alternativa. Dado o tempo decorrido, seria possível propor tecnologia mais avançada a um preço mais competitivo.

Ao analisar a cronologia das reuniões e da correspondência entre o MAI e o consórcio da Motorola sobre o Euro 2004, a PJ descobriu outro dado curioso: como o consórcio não conseguiu completar o SIRESP a tempo dos jogos do Europeu, ofereceu a determinada altura um sistema alternativo de cobertura mínima para os locais dos jogos com maiores níveis de risco. O MAI não reclamou por não estarem a ser cumpridos os requisitos do caderno de encargos – e ainda agradeceu ao consórcio por apresentar aquela alternativa. Que, afinal, ao que tudo indica, também não terá chegado a ser usada.

A PJ decidiu abrir uma averiguação preventiva a 23 de março de 2005, dia em que o jornal Público noticiou que o SIRESP tinha sido adjudicado por um despacho conjunto dos então ministros das Finanças e da Administração Interna, Bagão Félix e Daniel Sanches. Não só com a agravante de o despacho ter sido assinado três dias após as eleições antecipadas – ou seja, com o governo em gestão – como também com o facto de Daniel Sanches ter ligações ao consórcio vencedor, do qual fazia parte a Sociedade Lusa de Negócios (SLN) – holding de que o ex-deputado do PSD Dias Loureiro era acionista e Oliveira e Costa, presidente.

O mais curioso do processo é que, apesar de Daniel Sanches nunca ter sido ouvido sequer na qualidade de testemunha, o seu nome ficou gravado na primeira página do primeiro volume do processo, no quadro onde se escrevem os nomes dos arguidos. Ou seja, Sanches foi o primeiro suspeito desde que nasceu o processo. Os inspetores da PJ construíram enormes organogramas para demonstrar as ligações entre o ex-ministro e as empresas que integravam o consórcio vencedor do contrato do SIRESP. Chegaram ao ponto de desmontar um direito de resposta que o antigo ministro, ex-diretor-adjunto da PJ e ex-diretor-geral do Serviço de Informações e Segurança (SIS), publicara no Público, a 28 de abril de 2005.

Para começar, contestou a PJ, não era verdade que a proposta do consórcio SLN/Motorola tivesse sido admitida sem qualquer reclamação, como dizia Daniel Sanches. Afinal, a 15 de setembro de 2003, a EADS protestara e levantara suspeitas de acesso privilegiado a informação. Também não era verdade que o SIRESP fosse inadiável devido a uma resolução do Conselho de Ministros que aprovava o plano de combate aos fogos florestais para 2005. Esse plano, constatou a PJ, falava do aperfeiçoamento da rede VHF em banda alta, mas não do SIRESP. Daniel Sanches insistiu na tecla de que o SIRESP não tinha sido pensado tendo em vista o Euro 2004. A PJ não precisou de pesquisar muito: uma resolução de Conselho de Ministros de 2003 definia que a primeira fase de implementação do projeto deveria estar concluída entre 2003 e 2004, precisamente nos locais onde se iria disputar o Europeu.

Tráfico de influência?

 

Daniel Sanches ainda invocou não existir “qualquer incompatibilidade”, pois a adjudicação tinha sido feita a uma “entidade absolutamente nova, resultante de uma associação de empresas” em que não tinha capital e a cujos corpos sociais nunca pertencera. A PJ tinha outra opinião: no relatório e contas de 2003 do BPN, Daniel Sanches figurava como membro da assembleia-geral. O banco era detido a 100% pela SLN. Sanches tinha ainda sido administrador da Pleiade Investimentos e Participações, cargo a que renunciou em julho de 2004 para tomar posse como ministro da Administração Interna do governo de Santana Lopes. No conselho de administração da Pleiade e da SLN estiveram também o ex-ministro Manuel Dias Loureiro e Lencastre Bernardo (que passara também pela administração das empresas VSegur e Serviplex, à semelhança de Daniel Sanches).

No final da primeira fase de investigação, a 27 de maio de 2005, os inspetores pediram para ser aberto um inquérito. Tinham encontrado elementos que indiciavam “a prática de atos ilícitos” e uma “demonstração clara” de que o consórcio a quem havia sido adjudicado o SIRESP tivera “conhecimento antecipado e privilegiado sobre as condições em que o mesmo ia decorrer”, razão pela qual teriam tido reuniões em dezembro de 2002 quando a apresentação oficial fora feita apenas em maio de 2003. Por outro lado, era para os investigadores incompreensível a renegociação da proposta da Motorola quando já se sabia que os prazos não seriam cumpridos. Em causa estavam suspeitas de tráfico de influência e de participação económica em negócio.

O procurador José Maia consentiu e o processo transformou-se em inquérito. Entraram na investigação novos inspetores da PJ, fizeram-se buscas, foram ouvidos alguns concorrentes (não a EADS) e constituídos arguidos os representantes das empresas que compunham o consórcio vencedor. No final, o procurador do Ministério Público desvalorizou o ato de adjudicação de Daniel Sanches durante o governo em gestão, pois a votação do conselho consultivo da PGR, que considerou aquele ato nulo, não tinha sido unânime. Também não encontrou indícios de que Sanches quisera beneficiar aquelas empresas, ou de que daí tinha tirado qualquer proveito. Foi por falta desses indícios, explicou, que Daniel Sanches nunca foi ouvido no processo. Era preciso, dizia, dar “o benefício da dúvida”. Decorria o mês de abril de 2008 quando o processo levou o carimbo “arquivado”.

(Artigo publicado na VISÃO 1271, de 13 de julho de 2017)